Fragmento nº1 – Da pela à alma
O texto abaixo é um fragmento do capítulo “da pele à alma” retirado da autobiografia de Alejandro Jodorwsky. Esse é o excerto de Fragmento nº1.
Para entender um pouco: Jodorowsky é agredido na rua e Doña Magdalena (curandeira mexicana) após o salvar dos agressores o convida para ir até sua casa.
…. Doña Magdalena me convidou a sentar na mesa de massagem. Mal pus meu traseiro na superfície forrada de tecido de algodão grosseiro, ela me untou com suavidade o rosto e os lugares machucados com um creme que cheirava a benjoim. Me estendeu na cama e começou a me apalpar.
– Você ainda não tem estrutura, rapaz. É um homem sem esqueleto.
Pareceu-me que seus dedos se afundavam em minha carne até atingir os ossos. Uma parte essencial que, por medo da morte, eu havia desejado esquecer. Foi pressionando osso por osso, entrando nos lugares mais recônditos, delineando as formas, fazendo-me sentir sua força medular. Nunca mais voltaria a me mover do mesmo jeito. Antes meus gestos haviam sido superficiais, só de carne, agora tinham um eixo sólido e transbordante de vida. Na brancura dos meus ossos eu não via mais a morte, algo a ser engolido pela terra, mas sim uma concentração de tempo – eu era um esqueleto igual a todos os outros, mas imbuído de uma alma pessoal.
– Você só sabe pedir, tem feito isso desde que nasceu: levanta os braços, estira as mãos, abre a boca para o céu esperando a queda do maná…. Meu filho, você esqueceu que a terra o ensina a girar ao redor de um eixo, como a galáxia, como o universo. Se você não tem eixo é um pântano, um magma de esperanças que nunca se eleva, uma trepadeira à qual falta um muro para crescer. Seus ossos se desenvolvem girando em torno de si mesmos. A inclinação e a translação encontram sua raiz profunda na rotação.
Magdalena, com suas mãos convertidas em tenazes, moveu pacientemente um osso após outro – o perônio, o úmero, o cúbito, o fêmur, a rótula, a tíbia – e começou lenta, mas implacavelmente a fazê-los girar para fora, como se estivesse abrindo um caixão há muito tempo fechado. Tenso no começo, após superar ligeiras dores, comecei a me sentir livre de uma couraça que começava em meus ossos e continuava em meu espírito.
– Seus braços, suas pernas, sua coluna vertebral, por medo dos outros, sem que você se dê conta, tendem a girar para dentro obedecendo a uma memória fetal. Seu esqueleto tem reações de ouriço: ao menor perigo se enrola. Mas o tempo avança sem possibilidade de retrocesso. Você não pode se transformar numa bola, separado do mundo. Esses ossos sabem que um dia flutuarão no cosmos. Seu esqueleto, atraído pelo futuro, tem possibilidade de se abrir, como uma flor da qual você é ainda o botão fechado. E já basta de caminhar com um muro negro às suas costas. Você carrega na nuca o mundo convertido em noite. É só girar a cabeça que seus olhos iluminam o desconhecido…. Mais ainda…. Para a esquerda, assim, até que se apague o conceito nuca…. Agora para a direita…. Você não está obrigado a avançar arrastando uma escuridão. Seu corpo não tem dianteira, nem traseira, nem lados; é uma esfera rutilante.
E pouco a pouco Magdalena me fez girar a cabeça, até que não houve um só lugar que eu não pudesse ver. Deixei de me sentir atacado por um inimigo oculto na noite que se aninhava nas minhas costas.
– Se os ossos são seres, as articulações são pontes por onde você há de atravessar o tempo. Cada uma de suas idades segue vivendo em você. A primeira infância se abriga em seus pés. Se deixar o seu ser bebê encerrado ali, ele trava sua marcha, submerge você em uma memória que é berço e prisão, corta você do futuro, deixa-o estagnado no pedir sem dar e sem fazer. Deixe que a energia acumulada nas plantas, dedos e peitos do pé suba até as canelas, transforme você em menino: brinque, dance, chute o ar como se fosse um gigante que você domina. Mas não pare aí, ataque essa fortaleza aparentemente inexpugnável que são os seus joelhos. À frente apresentam uma couraça ao mundo, mas atrás, na intimidade, oferecem a sensualidade do adolescente para você. Os joelhos conquistam o mundo, permitem que você ocupe como um rei o seu território, são os cavalos ferozes da sua carruagem. Mas se não continuar subindo, evoluindo, aí você permanecerá encerrado em seu castelo. Vamos, entre neles e suba por suas coxas, faça-se adulto, nas articulações que unem seus úmeros à pelve, descubra a capacidade de abertura das suas pernas…
Diante de você, meu herói, se apresenta a sagrada coluna, cada vértebra é um degrau que leva você da terra ao céu. A partir da grandeza e potência das lombares, suba até as sentimentais dorsais e chegue às lúcidas cervicais, para receber a caixa craniana, cofre dos tesouros que culmina em dez mil pétalas se abrindo até a energia luminosa que chove do cosmos. E agora que aprendeu a se abrir, não permaneça trancado…
Ela decidiu então beliscar áreas da minha pele para esticá-la, do peito, das costas, das pernas, dos braços, das pálpebras, da nuca, do crânio. Esticou também o saco escrotal. Eu o vi abrir-se como um grande leque, soltando suas energias contidas. Essa bolsa que desde sempre havia ficado franzida como uma cortiça, abandonava seus desejos de proteger o esperma e se abria para o mundo, com alegria, sem apreensão, em um extenso sorriso.
– Agora, para fora. Entre no ar e nas suas fragrâncias ocultas, sinta como se prolonga até o infinito, transforma em asas as omoplatas, oferece a pele do ventre como uma taça amante absorvendo sem temor o mortal destino. Sua pele não é um cárcere que priva você do mundo, não vive encerrada numa ilusão que você chama “dentro”. Permita que leve você para “fora”, para que cesse o inferno da separação. Que seu corpo se alargue até as seis direções: até a frente, onde se acumulam os projetos; até atrás, onde dez mil mãos santas impulsionam a vida em você; até seu lado direito, por onde nascem os inumeráveis sóis; e também para a esquerda, ocaso onde a partida é uma promessa de regresso; até abaixo, abismos onde reina a tocha que é impossível apagar; e até acima, mais além das estrelas, luminosa ausência na qual se esfumam as palavras. Assim, continue se estendendo para que, ao chegar à borda que mergulha na vontade invisível, sinta que você é uma esfera crescente e descubra seu centro. Reconheça esse diamante, esse olho em chamas, mistério que nutre tanto o bem como o mal, dependendo do uso que dê a ele.
Perdi a noção do tempo. Quando ela terminou de esticar minha pele e me senti tão leve quanto uma nuvem, me dei conta de que era meia-noite.
– Essa é a hora em que a visão da coruja se torna perfeita. A terra, para ela, parece um ser vivo composto de amorosas ondas. Uma delas é o alimento. O rato sabe disso e se oferece sem tentar fugir. Entrará na energia que o tritura e se converterá em ave. A essência é imortal. Só muda de forma… Como uma ave de rapina, você verá o amoroso mundo enviar toda a espécie de alimentos para você. Para seu corpo e sua alma. Não se pergunte o que são… aceite eles! Vêm do mais profundo de si mesmo. Agora, pode ir. Não fale com ninguém no caminho. Apenas escute…
Desci pela avenida Insurgentes sem nenhum temor, apesar de que um apagão de energia houvesse lançado o bairro na escuridão. Os assaltantes passavam por mim como tiras de veludo negro, sem me ver…