Essa colagem trata-se da junção de pequenos fragmentos que extrai do livro “Passes Mágicos”, de Carlos Castaneda. A mola que impulsiona o trabalho do bruxo tem muito a ver com o que tenho buscado na minha pesquisa (o Bambudo). O livro trata sobre a visão que Don Juan1, um bruxo Yaqui, tem sobre a importância do aspecto corporal para o caminho do autocuidado e do autoconhecimento. Na verdade, a mensagem do bruxo se assemelha bastante com os princípios que a eutonia e a yoga propõem; assim como a filosofia das artes marciais, na sua origem. Também não tenho dúvida que muitas outras práticas e indivíduos veem a atividade corporal (somática) sob esse ponto de vista. Os chamados “passes mágicos” do título são, na verdade, determinadas posturas, movimentos, séries de movimentos, que são capazes de, segundo o bruxo, nos transformar.
Os passes mágicos
Os passes mágicos não foram inventados: foram descobertos. Descobertos pelos xamãs quando, em estados de consciência intensificados, sentiam tremendo bem-estar ao manterem determinadas posições corporais – ou quando movimentavam os membros de alguma forma específica. Descobriram que repetir determinadas séries de movimentos rendia-lhes tremendos resultados em termos de saúde mental, física e emocional. – (ver Gurdjieff, e os Movimentos). A realização desses movimentos possibilitava, segundo Don Juan, romper com o sistema (ver normose). “Romper com o sistema depende única e exclusivamente de acessibilidade ou inacessibilidade de energia”. Energia, essa, capaz de ser acessada e inerente a cada um de nós.
De acordo com o bruxo, os xamãs não são tão espirituais quanto se imagina – na verdade, são seres muito práticos. “Se você quer destreza física e sabedoria, precisa de um corpo flexível e forte”. Para um feiticeiro discernir a linha que separa a coragem da imprudência ele precisa estar, em primeiro lugar, totalmente “presente”, mas também ser extremamente habilidoso e estar em excelente condição física. “Para enfrentar o desconhecido é preciso estar altamente focado, possuir vísceras de aço e um corpo capaz de abrigar essas vísceras”.
A excelente condição física, conceito firmemente defendido por Dom Juan desde o primeiro dia de sua associação com Carlos Castañeda2, é produto da rigorosa execução dos passes mágicos. E, ao mesmo tempo, o primeiro passo para o processo de redistribuição de energia. “Esses movimentos não são exercícios físicos ou meras posturas do corpo; são tentativas reais de alcançar um estado mais favorável de ser”.
“A magia dos movimentos é uma mudança sutil que os praticantes experimentam ao executá-los. Uma qualidade fina que o movimento traz para o seu estado físico e mental… uma espécie de brilho, uma luz nos olhos. Essa mudança sutil é um toque do espírito, como se através dos movimentos os praticantes restabelecessem uma ligação não utilizada com a força vital que os sustenta. Devido a essa qualidade, a essa magia, os passes devem ser praticados não como exercícios, mas como uma maneira de chamar o poder com um gesto”.
Alguns bruxos, empolgados com o poder advindo dos passes mágicos, escolheram o caminho do ritual e da cerimônia. Segundo Don Juan, isso foi um equívoco. Apesar de ser muito importante concentrar a atenção dos praticantes em algum aspecto definido dos passes mágicos “é fundamental que essa fixação (concentração) seja leve e destituída de morbidez e severidade”.
Surgiu, então, segundo Don Juan, a partir de um determinado momento, uma nova era. A era da pura redistribuição (de energia). Foi por meio do Nagual3, Elias Ulloa, que dançou os passes mágicos, que o ritual foi jogado pela janela. Elias Ulloa o dançarino da infinidade. E antes disso, pelo nagual Julian, o ator da infinidade.
Segundo o bruxo, A tendência natural dos homens é afastar a vitalidade dos centros de energia dos centros de vitalidade. A prática dos passes mágicos permite que essa energia seja redistribuída para os centros vitais e para onde mais o praticante deseje. Daí a sensação de bem-estar e destreza experimentada pelos praticantes.
“Ao realizar os passes mágicos estou me libertando do fluxo de expectativas e comportamentos patológicos condizentes com o que a sociedade e o meu ego dizem por onde devo seguir. Entre elas, aquelas expectativas condizentes com o que dizem ser a minha idade – pressão alta, problemas nas articulações, necessidade de descanso e acomodação. Eu dominei minha mente. Não tenho uma mente para me dizer que é hora de ser velho. Não honro acordos nos quais não participei!!! Ser atormentado pela idade avançada é um desses tais acordos.
Os passes mágicos são ensinados como um sistema de movimentos. Organizados em grupos. Quanto mais extenso o grupo maior a necessidade dos praticantes usarem suas memórias para lembrá-los. Segundo Don Juan, o benefício de praticar os grandes grupos é o de forçar os iniciados a usarem a memória cinestésica. Memória, esta, capaz de calar o barulho da mente: o devaneio (diálogo interno).
“O diálogo interno é o que mantém a humanidade estacionada onde está; assim como a energia necessária a VIDA, inacessível”. Realizando o oposto do diálogo interno, isto é, o silêncio interior, os praticantes podem romper os seus bloqueios (couraças), adquirindo assim uma extraordinária fluidez de percepção.
O que os feiticeiros experimentavam como uma sensação de bem-estar e de plenitude quando realizavam os passes mágicos era, em essência, o efeito da energia não utilizada sendo recuperada pelos centros de vitalidade no corpo. Os grandes grupos de movimentos foram reunidos em grupos menores, chamados de séries. Elas foram criadas com o objetivo de trabalhar questões específicas.
“Quando ensino os passes mágicos a vocês, estou seguindo o estratagema dos feiticeiros tradicionais de enevoar a sua visão linear. Saturando a memória cinestésica de vocês (com muitos detalhes), estou lhes criando um caminho para o silêncio interior”, explica Don Juan.
“Uma vez que todos nós estamos cheios até a borda com o que precisamos fazer e com o que não precisamos fazer no mundo da vida cotidiana, temos muito pouco espaço para a memória cinestésica.
“Você (Carlos Castaneda) mesmo deve ter notado que não tem nenhum espaço para a memória cinestésica. Quando quer imitar meus movimentos, se confunde para estabelecer no seu próprio corpo o que é direito e o que é esquerdo. Se uma grande sequência de movimentos lhe for apresentada, isso lhe custará semanas de repetição para se lembrar de todos os movimentos. Mas isso é bom! Enquanto você está tentando memorizar os movimentos, precisa abrir espaço para eles em sua memória, afastando outras coisas do caminho. Esse era o efeito que os antigos feiticeiros buscavam.”
Uma questão muito importante a ser considerada, ao praticar as posturas ou as séries é que “no início é muito difícil discernir o fato de que os passes mágicos não são um sistema padrão de movimentos para desenvolver o corpo. De fato, eles desenvolvem o corpo e aprimoram a performance, mas apenas como um subproduto de um efeito mais substancial”.
1 Xâma mexicano, mestre de Carlos Castañeda.
2 Antropólogo e escritor peruano. Autor de Erva do Diabo, Uma estranha Realidade, Os Passes Mágicos, entre outros
3 Feiticeiro – na tradição tolteca, um Nagual não é um feiticeiro comum… ele pode se transformar em um animal. Porque aprendeu a sonhar a si mesmo em uma forma diferente da forma de um ser humano