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O Mundo ocidental tem por lema fazer uma imagem de tudo e de todos. Elabora-se a imagem de um corpo para poder-se rapidamente esquecer da ação e do próprio corpo. O corpo vivo que a gerou passa a ser secundário, mortificado e esquecido...
janeiro 3, 2018

A MORTIFICAÇÃO DA MÍDIA PRIMÁRIA (CORPO) PELAS IMAGENS
Uma reflexão a partir do pensamento de Dietmar Kamper em Von Wegen
(München: Fink, 1998)
Günter Wilhelm Uhlmann , São Paulo

O arranjo vigente, a partir de Kamper, tem por lema fazer uma imagem de tudo e de todos. Elabora-se a imagem de um corpo – mídia primária na conceituação do semioticista alemão, Harry Pross – para poder-se rapidamente esquecer-se da ação e do próprio corpo. O corpo vivo que a gerou passa a ser secundário, mortificado e esquecido, que leva a Kamper a perguntar “o que fazer com tantos Defuntos”. O que fazer com os corpos mortificados em imagens. Corpos vivos, que para continuarem a viver necessitam de contato, de conexão, de vínculos efetivos que a imagem, intocável, não é capaz de suprir. Afirma Baitello (2002) que “o primeiro sacrifício (…) termina por ser o próprio corpo, em sua complexidade multifacetada, tátil, olfativa, auditiva, performática e proprioceptiva”.
O contato físico, o tocar-se, tão requerido pela vida, pela mídia primaria, passa por uma profunda metamorfose. De onipresente antes do nascimento, o ser envolto, protegido e atendido em todas as suas necessidades, no ventre materno, passa a ser apenas tolerado, permitido.
O ser vivo, o corpo presente é comum, vulgar, ao qual não se rendem homenagens e atenções, porem ao fantasma, ao zumbi, à imagem que o substituiu e por conseguinte mortificou, voltam-se as atenções e honras. O convívio social passa a ser, de maneira crescente, até mesmo exponencial com o advento das novas tecnologias geradoras de imagens, governado por imagens, de aparências. Imagens que se sobrepõe à pessoa. Idolatra-se, a imagem de uma mulher, de um homem, imagens estas frequentemente geradas não apenas por corpos vivos autênticos e reais, mas também por corpos já mortificados em imagens que passam a governar os demais corpos que em imagens mortificaram e continuam mortificando os seus e demais, ainda, corpos vivos. Parafraseando Baitello (2002) tendo em mente a crescente tecnologia do afastamento, da virtualização, é válida a ilação de que “a imagem de um presente será sempre a sua ausência”, um “corpo que apenas se vê quando é visto, se observa quando é observado, jamais se sente porque não pode ser sentido”.

A partir desta perspectiva não é de se estranhar a presença cada vez mais intensa da revolta do corpo devido à violência por nós, a sociedade, lhe imposta, direta e indiretamente via tecnologia desenvolvida e aplicada por esta mesma sociedade. A mídia primária em sua revolta se expressa igualmente com uma violência, que se expressa em fenômenos sociais sobejamente conhecidos e vivenciados – o aumento da violência social e pessoal tão presente no cotidiano. Esta constatação parte do fato de um corpo para poder ser mortificado em uma imagem, precisa ter alcançado um determinado ‘status social’, o qual é medido, atribuído, pelos valores desta sociedade que por seu turno são igualmente influenciados pelas imagens, ou seja, caracteriza-se a realimentação do processo. É frequente estes valores sociais serem expressos por valores monetários e estéticos a serem alcançados a qualquer preço.
Preço este que pode ser a vida, afinal esta é somente atrelada a um corpo vivo, o qual não sendo uma imagem venerável, não se lhe atribui o valor e as homenagens sendo, portanto, sem valor, podendo ser vilipendiado em nome das aparências, do status a ser alcançado que o habilite a ser mortificado em uma imagem.
Kamper busca elucidar a gênese desta mortificação, do corpo pela imagem, a partir do relato bíblico (também uma imagem!) da colocação de Jesus para Maria “Não me toque pois ainda não ressuscitei e retornei ao meu Pai”. Esclarece Kamper, que neste momento Jesus ainda era uma imagem inacabada, que não poderia ser tocada por um outro corpo, pois este tocar poderia macular a imagem em elaboração, coibir, portanto, a sua ressurreição, ou seja, a sua transformação em uma imagem acabada, quando então, jamais poderá ser tocado.
A análise do processo de formação das imagens lhe traz a elucidação. Ao verificar que o imagético de um corpo vivo que mortifica corpos em imagens, identifica que este imagético, em análise última, não é tão livre. É bem verdade que no imagético, a segunda realidade do tcheco Ivan Bystrina, há a ausência da regência das leis da física e da lógica no qual tudo é permitido e concebível. No entanto, esta segunda realidade também é influenciada e condicionada pelos valores culturais, pelas “leis” não escritas e consubstanciadas em códigos. “Leis” estas que estão arraigadas, coladas e sobre coladas cumulativamente na cultura de um povo, criadas e recriadas por este povo o qual, por seu turno, também por elas é recriado, ou como se expressa Baitello (1999) “o cultivador passa a ser o alvo da ação de cultivo”.
É este conjunto de valores culturais que pressiona, condiciona a formação, a irreversível transformação do corpo mortal em um corpo morto. Cultura do espetáculo, do consumo – objetivando corpos dóceis e obedientes. Cultura mantenedora do status quo.
A construção mais rápida das imagens, a aceleração da mídia, conclui Kamper na verdade não gerou uma economia do tempo, mas sim uma sua maior utilização, consumo e desperdício. A tecnologia geradora de imagens, a tv, o vídeo, a tela plana, leva a pessoa que as vê a se ‘desligar’ da superfície da imagem tal qual esta se ‘desligou’ do corpo que lhe deu origem.
As imagens na tela, apagam o passado, alteram o presente e suprimem o futuro; representam um conhecimento morto, de um espaço morto, no qual o tempo foi reduzido a uma única dimensão, uma única sucessão de pontos do ‘agora’. Afirma Postman (1988) a este respeito que fazer imagens, “castelos no ar, todos nós o fazemos, o problema surge quando queremos os habitar” arrematando que com o surgimento da televisão “começamos a ocupar e habitar este mundo de imagens”.
A realidade fragmentada, retratada por imagens sem tempo, levam as pessoas a reações inadequadas tais como a regressão a tempos passados ou digressões em mundos de fantasias, enfim a viverem em um mundo sem o agora, sem o real, somente o virtual e imagético. Em um mundo conf. Postman (1988) de pseudo-contextos que procuram gerar uma utilidade aparente, ao agregar, fragmentadas informações sem importância.
O pretendido e anunciado sucesso, poder e possibilidade de domínio pelas imagens acabou por transformar-se numa derrota. Kamper analisa este fato a partir da depuração dos ídolos (ícones) e idílios, presentes desde os primórdios da civilização, frutos da sua capacidade imaginativa, da capacidade da sociedade gerar, portanto, imagens.
Os ídolos foram e são derrubados e dos idílios (representando um estado de bem-estar, impossíveis e inverossímeis) emergem revelações do que pretendiam esconder. Nenhum nem outro é permanente como nada neste mundo é constante, a intencionalidade da sua conservação faz apenas com que aumente a velocidade da sua derrocada. Este fato advém da própria característica das imagens que não ‘vivem’ por si só, necessitam de alimento, auferido a partir do olhar de alguém que as venere. Os idílios, por seu turno, ao representarem um estado almejado, necessitam de um igual proceder, para que este estado continue sendo almejado.
A humanidade na visão de Kamper não tem habilidade de lidar com as imagens, procura governar, dirigir com ídolos e seduzir com idílios, porém as promessas um dia terão de ser cumpridas, a temporária sensação de bem-estar, proporcionado pelos idílios se rende à realidade. Realidade esta que fora reduzida a algo menor, pequena, para poder ser dominada, entendida e planejada. O mundo foi reduzido, recortado e contido em uma superfície plana de uma imagem. Esta superficialidade, no entanto, é enganosa para o seu espectador, pois a superfície contém significados intrínsecos tais como o recorte, os limites, o enquadramento, o superior e o inferior, a profundidade simulada e a própria constelação sugestiva das figuras representadas na imagem.
A representação das figuras (formas, contorno e fundo) ocorre por uma codificação simples, tudo que se mostra é reduzido do tridimensional (real – vivo) a uma superfície de uma tela plana, a um simulacro. O que engana não é esta visão frontal da figura em si, mas sim o engano decorre a partir do aparato de suporte da imagem. Tem este aparato a desvantagem de levar ao esquecimento que houve um corpo representado naquela imagem. Mais uma vez fica nítida a percepção da supressão, da mortificação do corpo pela imagem que passou a representá-lo. A pretensão de representar o mundo em uma tela plana mesmo com a mais alta definição tecnológica é por Kamper definida como um delírio, pois ainda é uma destruição, no instante que faz com que se ‘esquece’ que as imagens são um cadáver de uma visão passada, de um amor morto.
A partir desta reflexão, Kamper elabora, em parceria com outros pensadores, uma constelação de tópicos, com o fim precípuo de descrever, um lugar e um processo, que possa evidenciar a inevitável necessidade de um retorno à vida – uma Arte da Contra-Informação.
Estratégia do suportável
Trata da percepção de, a verdade nua e crua, ser percebida como obscena e contundente. O distanciamento é requerido para interpor uma zona de conforto e consolação entre a verdade observada (real) e a reconhecida (assimilada), benevolente, ou seja, uma aparência que faz com que a verdade (desconfortável) se torne uma verdade silenciada. Em suma é a teoria usada como sendo a estratégia para tornar suportável o insuportável, para esquecer as coisas terríveis. Lembra, no entanto, que esta estratégia alimenta também a maldade do homem.
A quebra da unidade imaginária
A fragmentação, até então característica do pensamento humana, que correspondia a uma unidade imaginaria, aparece agora na tela na forma dos programas destruidores do ordenamento temporal. O “zapear”, pular de canal em canal na busca de algo interessante faz com que o telespectador pratique a, por Kamper chamada, matança de imagens transformando a tela de exibição das imagens em uma tela “apagada”. Instala-se o formato, adequado à máquina de tempo, da sistemática destruição de imagens pelo lema do fruir “livremente”.
Crise do visível
Trouxe esta a alta exposição, logo iluminação, que por sua vez acarreta em projeções de sombras jamais imaginadas. Os sonhos passam a ultrapassar a condição humana. O mundo transformado continuamente em imagens, redunda em uma busca frenética da visibilidade, cujo reverso, sua sombra traz uma proporcional invisibilidade.
A realidade midiática
Intencionalidade e efeitos da realidade midiática está calcada em uma realidade binária, insuficiente, no entanto, para uma percepção da realidade complexa, analisada sob égide da reducionista, econômica e simplista dualidade do “sim” e do “não”. A abstração do corpo ocorre em sua plenitude, para Kamper, somente a partir dos novos meios, alcançando uma complexidade que torna difícil discernir se a autoreferência é benéfica ou não. Complexidade esta que desloca constantemente os problemas, e o feedback das ações dos processos leva a uma não possibilidade de uma observação simétrica, que por seu turno leva ao acompanhamento, à adesão, na qual a estilização da realidade acaba por desarmar os sentidos, a percepção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABBAGNANO, Nicola Dicionário de Filosofia 4ª ed. São Paulo : Martins Fontes, 2000
BAITELLO, JR. Norval As imagens que nos devoram Antropofagia e Iconofagia – Encontro Imagem e Violência São Paulo, 2000 in http://sesc.uol.com.br/sesc/hotsites/imagemeviolencia/conferencias.htm cap. 02/03/2001
BAITELLO, JR. Norval Comunicação, Mídia e Cultura in São Paulo em Perspectiva. SEADE : São Paulo, 1998.
BAITELLO, JR. Norval O Animal que parou os relógios Annablume : São Paulo, 1999.
BAITELLO, JR. Norval O olho do furacão – Pré Print CICS-COS/PUCSP : São Paulo, 2002
FLUSSER, Vilém Das Bild (1989) in http://www.servus.at/ILIAS/flusser.htm 26/4/2004 http://sesc.uol.com.br/sesc/hotsites/imagemeviolencia/ cap. 04/07/2001
KAMPER, Dietmar Estrutura Temporal das Imagens Pré Print CICSCOS/PUCSP : São Paulo, 2002
KAMPER, Dietmar O corpo vivo, o corpo morto in http://sesc.uol.com.br/sesc/hotsites/imagemeviolencia/conferencias.htm cap. 02/03/2001
KAMPER, Dietmar Von Wegen München : Fink, 1998 POSTMAN, Neil Wir amüsiren uns zu Tode. Frankfurt : Fischer, 1988
PROSS, Harry Medienforschung. Darmstadt : Carl Habel, 197